Vejo degraus de palha; dirigem-se para o cerúleo do céu, pintalgado com rasgos de branco. Subo às nuvens e sento-me, olhando de cima o que está por baixo; ao mesmo tempo, sei que não estou acima de rigorosamente nada; mas não estou só, também o sei. Balanço com o vento e deixo-me levar pelo encanto de um canto: alguém canta? É uma melodia que me seduz, mais não seja pela ternura das palavras, proferidas com tão bela harmonia e sentido…. sinto que me convém que o sentido das coisas faça mesmo algum sentido; não existindo sinal dele, perco-me do trilho.
Levanto-me e caminho. Sinto as nuvens acariciarem-me os pés, agora descalços. Qual algodão? É como andar em cima de pura seda, mas em que o corpo não tem peso e o tecido não está a cobrir nada, simplesmente flutua! Alguns passos são mais certeiros que outros, mas tenho a certeza que não caio; é como se uma mão gigante — mas meiga — me estivesse a orientar por baixo de mim.
Sigo em direcção dos fonemas cantados. São lindos, mas não distingo nenhum dialecto; serão sílabas soltas? Vocábulos dispersos, sim. São o que são! Hipnotizado com a doçura dos lábios — que só podem ser femininos! —, e que parecem soltar as cadências propositadamente para mim, avisto movimento. Parece-me subtil, por estar distante. Mas, num relampejar, está ao pé de mim! Já os tinha visto: em sonhos. Um unicórnio de imaculado pêlo liso, branco. Dá mais três galopes, dois trotes e estaqueia ao pé de mim. Os olhos profundos, do tamanho de bolas de golfe, estão sedentos por saber, curiosos por descobrir. A cauda reluz brancura, mas reflecte uma aura violeta que me conquista. Num sinal inconfundível, com o pescoço, convida-me a subir. Subo? No momento em que a palma da minha mão nua acaricia-lhe a nuca, uma sensação de liberdade envolta-me e revolta-me! Ele revolta-se também e dá mais um sinal impaciente de que não há tempo a perder. Aninha-se à minha frente para me deixar subir.
O galope é consistente, mas não fere, não violenta. É harmonioso, afectuoso, permite-me abrir os braços e atender ao brilho da luz do dia; fecho os olhos e permito-me ser banhado pelo calor dos raios do Sol; deixo o vento soalheiro cortar a minha face e volto a ouvir…. a voz! Estou mais perto, sei-o.
Enxergo um altar feito de nenúfares. Não há lagos no céu, mas os nenúfares parecem ondular acima do chão algodoeiro. O unicórnio abranda e deixa-me deslumbrar com o resto. Não posso acreditar: os meus olhos só me podem estar a enganar. Uma sereia?!

O seu corpo refulge e desvenda uma silhueta, perfeita demais para ser verdadeira. O seu ventre orna curvas redondas e completas. Uma obra exímia. E a voz? Quando desço do equídeo singular, cala-se. Deixa de olhar para o infinito acima de nós e desce os olhos celestes até aos meus. Não abro a boca. Simplesmente fico…. e, na mesma doçura, como até agora cantava, ela profere:
— No agreste momento em que despes as caras que já trajaste, ficas só com a tua própria. Deixas de fora preconceitos, pré-conceitos e crenças; a cognição da tua arte expressa-se numa dança de espectros, invisíveis aos mais distraídos — passa os dedos maravilhosos pelos cabelos em tom de mel. Olho-a com serenidade, mas sequioso por mais palavras. Ela sabe disso, e continua: — O teu saber vibra como um todo, espalha-se pelo ar, derrama-se pelo chão. Agarra cada momento desses: muda-o, transforma-o; deixa-o invadir-te e aceita o que te oferece. Rende-te ao universo, permite-te viver, rir, sofrer e chorar. És um ser vivo: por isso, vive!
Abro os lábios e levanto o braço para lhe dirigir uma questão, mas…. os nenúfares escondem-na e levam-na subitamente: para baixo. Umas escadas mostram-se à minha frente, no lugar do altar. Os degraus são a descer, mas não são de palha….
São de nenúfares. Está na hora de voltar.