Copo vazio

A noite vestia-se com um luar hialino que banhava a esplanada do Restaurante Ratzy. No cimo da mesa mais chegada ao varandim — que dividia o espaço de uma vista cristalina sobre Paris — estavam dois grandes amigos.

Glass é um copo americano de sete centímetros. Já vivera muitos anos e as suas feições acusavam algum cansaço vítreo. Nasceu na Marinha Grande e emigrou, ainda tenro, para França, onde acabou por viver a vida toda; excepto por uns anos loucos em que se deixou levar por Cristal — uma elegante flute — até à Bélgica. Foram tempos de aventuras, mas a vida acabou por trazê-lo de volta. Para um copo, custa muito assistir ao estilhaçar de um amor, mesmo que só tenha o azar de o ouvir acontecer. Abre rachas no coração.

Fosco é um jovem copo de shot, a quem a vida tem sorrido. Nasceu na China e deixou-se importar para França. Passou muito tempo armazenado, mais que o normal na vida dos copos. Mas quando foi finalmente alienado, sibilou de felicidade! Mesmo sabendo que os do seu fabrico duram menos, Fosco mantém um sorriso inabalável. Mas já viu partir muitos amigos. A maior parte deles começa por se aproximar de lugares perigosos. Deixam que a vida lhes lasque fragmentos, depois frequentam precipícios que os levam a quebrar, mas a maior parte começa por se deixar lavar em máquinas onde o calor da secagem lhes abre talhos na pele; principalmente os da alta classe, os mais finos. Mas todos eles sentem. Recordam amigos, amores. Passam a vida a vê-los fragmentar.

Mas aquele era um dia especial para Fosco. Ainda nem acreditava que, no dia antes, se tinha deixado embeber com Victra; foram mesmo até ao fim e chegaram ao descalabro de brindar um com o outro! Fosco descrevia ao amigo a sua paixão derradeira.

— Tenho mesmo uma quebra pela Victra! — admitiu Fosco. — O que achas, Glass? Achas que vamos ter uma vida cintilante?
Glass olhou-o, de relance, e deixou vazar um sorriso.
— Hahaha! — Fosco estava ao rubro. — Eu sabia! Somos feitos um para o outro! Ela tem um belo , não achas?
Glass apenas sorria. Não proferia uma palavra que fosse.
Um empregado aproximou-se. Puxou a toalha de mesa e fez tombar Fosco.
Glass manteve-se de , mas tinha vitrificado! O amigo estava em perigo…

Fosco rodou sobre a mesa. Caiu.
«À nossa…», pensou Glass. E deixou derramar uma gota….

Publicado por Pedro Almeida Maia

http://www.almeidamaia.com/

2 opiniões sobre “Copo vazio

  1. Eu brindo com um copo cheio de letras e palavras maravilhosas, estas que me ofereces, para eu encher a alma, agorinha mesmo!
    À nossa…
    Adorei!!!

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