Haja saúde com lágrimas

— Haja saúde! — disse-me o Luís, à entrada. — Home’, vocês que entrem e estejam à vontade! ­— ele recebia os convidados como se estivesse à porta de sua casa. De certa forma, estava: era “uma casa portuguesa, com certeza”, mas eu diria “uma casa açoriana e não engana”. A casa arcana, a que o Luís tão carinhosamente apelidou de “tasquinha”, era o Teatro Ribeiragrandense.

4081367514194A cidade da “grande ribeira”, cada vez mais capital cultural da açorianidade, exalava nostalgia naquele quinze de Junho. A arena do teatro estava diferente: tresandava a talento, fado e saudade. No meio das cadeiras em tecido cor-de-sangue, corria nas veias dos presentes um calor alterado. Sim, viam-se sorrisos, abraços e boa disposição; nada disso era novidade, sempre que aquele homem estava por perto, mas o sabor agridoce tinha também entrado no salão.

E eis que se baixam as luzes. Depois de cavaquear com um e com outro pela plateia, Luís Gil Mendes Bettencourt sobe ao palco pela frente. Senta-se ao microfone e rejeita modestamente o caloroso aplauso que lhe é dedicado.
— Não é preciso nada disso — disse ele. Explicou que queria momentos de à-vontade e convidou os presentes a recolher um dos imensos copos de Angelica que aguardavam na berma do palanque. Antigamente, era comum acenderem-se isqueiros durante as baladas. Agora, imaginem uma plateia inteira a erguer copos de licor.
— Haja saúde! — brindou ele. O público correspondeu. E bebeu talento. Até pouco antes das doze badaladas, Luís conduziu-nos por uma viagem no tempo. Atrás dele, três tímpanos imponentes. Ao lado, um segundo microfone. Rodeado de guitarras clássicas, de folk, uma guitarra eléctrica e uma Viola da Terra, fez rodopiar emoções num trajecto que emocionou.

Foi com o tema “Dreams” que abriu as hostilidades daquela noite magnífica, ao que ele chamou de “teledisco foleiro”, mas que marcou uma geração que via a RTP Açores e que repetia: at the end of the road I see hope. A moda “luisbettencourtista” continuara com “If There’s a Reason”, cujo vídeo era “uma espécie de Avatar da altura” — palavras do próprio —, o que só vem provar o seu lado visionário.

Luís confessou que vai apoiar a carreira da filha. Maria subiu ao palco e desbravou o seu timbre doce e com um grasp cada vez mais controlado. O duo também brindou o público com “More Than Words”, ao que Luís sublinhou que “aquela pancadinha é minha”, referindo-se ao abafar as cordas com os nós dos dedos que se tornou mundialmente célebre. São coisas das quais não se conseguem registar direitos de autor. É difícil esquecer o que acontece quando Luís Gil Bettencourt agarra numa guitarra, qualquer que seja. As dedadas frenéticas e os strums prestidigitadores magnetizam qualquer apreciador, e são o símbolo do que eu gostaria de chamar a “bettencourtização” da música.

Neste “Antes que a Voz me Falte”, Luís mostrou um lado saudosista, mas a voz não lhe faltou.
— Vocês vêm ao meu funeral e aplaudem? — desabafou ele, contrariando o sabor a despedida. Falou com ironia do problema que lhe alterou os planos para o futuro.
— Na Terceira, a gente chama de tosse. Vocês sabem o que é tosse? — arrancou gargalhadas da plateia.

Na que foi considerada a última grande actuação “cantada”, falou de um novo disco “Coisas Alheias”, ou seja, não se vai desligar da música. Não acreditamos e não queremos que o faça. Uma das provas de que isso não pode acontecer foi o momento mágico em que pegou na Viola da Terra. Com a sala iluminada q.b., um holofote descia directamente sobre ele; embatia no espelho no cimo da “viola dos dois corações” e produzia um efeito deslumbrante: o delicado feixe luminoso derramava-se pela sala, como um farol que nos guia a bom porto. No final, ouviram-se os tímpanos e a trompa a acompanhá-lo. Depois, desabafou acerca de nem sempre sentir que pertence aos palcos:
— Vocês fizeram-me sentir como se eu pertencesse aqui! — e as lágrimas humedeceram a sala.

A ovação de pé foi interrompida por ele. Diz não gostar de palmas. Se assim não fosse, o aplauso merecia durar até ao dia seguinte.

Luís Gil Bettencourt não ficou na aurícula: já vivia lá! E queremos continuar a ver o nome dele nos cartazes!

Haja saúde!

Publicado por Pedro Almeida Maia

http://www.almeidamaia.com/

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