A suis generis Ana Bacalhau trazia um vestido às florinhas e uns saltos à maneira, quando pisou o palanque, tal e qual uma fadista tradicional, para receber palmas do lotadíssimo Teatro Micaelense. Minutos antes, os quatro músicos trajados de negro tinham abraçado os instrumentos e arrecadado uma dose de boas-vindas. Instrumentos afinados, sons harmonizados…. Mas, esperem. Quatro músicos?! Os Deolinda não eram uma trindade atrás de uma divindade? Sempre ouvira dizer que, em 2006, os irmãos Pedro da Silva Martins e Luís José Martins, outrora fundadores de um “Bicho de 7 Cabeças”, haviam usurpado a prima Ana Bacalhau dos Lupanar para cantar umas cançonetas. A coisa correra bem e ela chamara também o marido, José Pedro Leitão. Deve ter dito: “Traz lá o contrabaixo, amori, e junta-te à festa”.
Bem, e que festa! A sala estava a meia-luz e os primeiros acordes tilintaram. Revolucionaram o bichinho da audiência, que não teve outra hipótese senão dar início ao bate-o-pé inconsciente e ao bater palmas a compasso: logo nas primeiras músicas! Começava assim uma actuação memorável que terminaria, não com um encore, mas com três! Aquilo a que eu sabiamente chamo de trois-core!
Dizem que Pedro Martins só escreveu quatro canções, nos primórdios dos Deolinda, mas que depois catadupejaram para a ribalta de hoje em dia. Sentado no extremo esquerdo, manuseava o braço da guitarra como quem conduz uma donzela numa valsa. Escrever para televisão só lhe pode ter aguçado o espírito cinematográfico, com direito a assobiadelas quando despiu o casaco. Certo é que escrevinhar o Desfado valeu-lhe uma visita da SPA. Bateram-lhe à porta e disseram: “É só para entregar um galardão, o da Melhor Canção do Ano de 2012”. Mas não ficou por aí, teve mais fados. Foi só esperar por Maio de 2013, quando a SIC e a Caras premiaram-no com um Globo de Ouro. O grupo já alcançou várias platinas, um “Prémio Amália Rodrigues” e um “Songlines Music Award”.
No extremo oposto do palco estava o mano mais novo, Luís José Martins. O Conservatório Nacional de Lisboa pariu-o, para terras gaulesas. Em Castelo Branco, licenciou-se em Música, o que proporcionou uma carreira de professor em vários conservatórios portugueses. Só depois vieram os projectos musicais. Interessante, a forma como ele dialogava com as cordas da guitarra. Era como se elas percebessem a linguagem dos dedos afoitos e audazes. E quando ligou a distorção? Sim, distorção! Bem, fale-se em como o melhor timing permite as mais incríveis imprevisibilidades! Mas o músico também fez magia em pequenas dimensões, não dominasse ele também a viola braguesa, o ukelele, o guitalele e o cavaquinho. Nos dias que correm, não é fácil encontrar quem domine cavacos.
A percussão foi simplesmente serginal! A inclusão das cadências de Sérgio Nascimento deu renascimento ao fado, se é que alguma vez foi outra coisa que não pulsante. Aliás, nunca tinha visto tamanha inteligência num colectivo português, tamanho brilho e perspicácia em marcar mensagens, ora apimentadas, ora anedóticas. Nunca havia percebido que a ironia conseguia criar analogias tão fortes como quando ouvi o Fiscal do Fado. É incrível como este grupo, num “Mundo Pequenino” como o nosso, enfia Portugal inteiro em cada compasso.
O contrabaixista aveirense José Pedro Leitão tem grandes qualidades, sendo a principal ter nascido em ’79. Continuo a defender que foi um ano de grandes colheitas, e ele é só mais uma prova disso! O Engenheiro Civil, que ajudou a dar música nos Lupanar e nos Tricotismo, manobrou as notas graves do colectivo com tal preciosismo e cadência, que hipnotizou a hipófise de muita gente naquela sala. Mais difícil ainda é percorrer as longas cordas sem a aliança de casamento prender. Ah, não sabiam? O homem é casado. E tem a sorte de viajar com a mulher, mantendo-a sempre debaixo de olho, sempre diante de si. Ela canta e dá pelo nome de Ana Bacalhau.
A moça lisboeta dá sempre cartas aos que a julgam como mera cantadeira. Ana domina os dotes vocais com distinção, tanto nas qualidades a que o fado tanto obriga, como em apontamentos líricos magnificentes. Controla amplitude, abertura e dicção como raramente se vê. Além disso, teatraliza de forma exemplar as personagens que as canções muito bem desvendam, acrescentando-lhes movimentos de anca irreplicáveis e passos de dança contagiantes! Torce o sobrolho em Pois, grande castiça em Fon Fon Fon, teatral no Fado Toninho e magistral no restante repertório riquíssimo, merecedora de “Ah, fadista!” e “Bravo!” por várias vezes.
Deolinda é Fado. Fado é Portugal. Portugal é Bacalhau. Bacalhau é Ana, e Ana é Deolinda. Ou seja, Ana Bacalhau é Fado e os Deolinda são Portugal! Sim, os Deolinda são uma trindade atrás de uma divindade.
E ficaram inquestionavelmente na aurícula!
in Jornal Terra Nostra, 26 de Julho de 2013