O ano era o de dois mil e catorze e estávamos com uma dúzia de dias de abril. Era meio da tarde, o Sol a três quartos do arco. Meti o panfleto desdobrável no bolso e seguimos caminho. Parecia que a cidade se tinha inclinado para a baixa e que todas as pessoas tinham deslizado para os mesmos sítios. O resto dela estava deserto. A ilha tremera dois dias antes, e pensei: que bela promoção! Impulsionar um evento desta natureza não é tarefa fácil, mas orquestrar um Tremor a esse nível seria elevar a fasquia para a escala de Mercalli, atribuindo-lhe intensidade imensurável.
Parecia estar tudo a postos, e estava mesmo. Depois, fiquei zangado. Zanguei-me por não ser ubíquo, omnipresente. Queria ser mosca para ver e ouvir tudo. Compreendo e louvo o conceito do festival, mas desejei mesmo estar em todos os palcos. E não consegui. Algumas salas estavam completamente lotadas, não só com público, mas com bom gosto também. Tudo sinais de que havia vida na cidade.
O riquíssimo programa prometia: replays alternativos da guitarra apaixonada e os ecos inebriantes do bracarense Gonçalo no Hostel 3/4 e mais tarde na Travessa dos Artistas; a voz arrepiante da talentosa micaelense Sara Cruz a dar asas ao Cantinho dos Anjos; Nuno Rodrigues a dedicar moda à Duquesa na Londrina; os inconfundíveis Ricardo Reis, Paulo Bettencourt, Luís Senra, Luís Sousa e Ricardo Silva, que são o mundo de Lulu Monde, a jogar em casa, num jam jazzístico da Travessa dos Artistas; as harmonias do guitarrista portuense Jorge Coelho a incendiar o Ateneu Criativo; o one man show David Santos, multi-instrumental conhecido por Noiserv, a encher o Teatro Micaelense; os blues cada vez mais carismáticos dos micaelenses Self Assistance no Baía dos Anjos; o pop eletrónico indie lisboeta dos Sequin para fazer sonhar o Ateneu; a guitarra experimentalista de Rui Carvalho, o Filho da Mãe, a ecoar pela apaixonante e icónica Igreja de Santa Bárbara; a gentileza utópica dos sons de Teresa Gentil na Tasca; Miguel Nicolau e Marco Franco a darem reminiscência lisboeta à Memória de Peixe no Ateneu Criativo; o punk imparável dos The Glockenwise a agitar o Baía dos Anjos; o avant-rock do trio alternativo portuense Torto no Arco 8; o psicadelismo devocional de Óscar Silva a emprestar o folk nortenho a Jibóia e a transfigurar o mesmo Arco 8; e ainda Rui Maia a.k.a. Mirror People a trazer vida sintetizada ao Ateneu.
Também se desenharam cenários improváveis: Jibóia da Mãe foi uma Jibóia misturada com um Filho da Mãe na Galeria Fonseca Machado; Miguel Nicolau aliou-se a Jorge Queijo para uma Tasca animada; o deejay micaelense NEX com o veejay argentino Federico Lamas no Ateneu Criativo; e ainda cinema, com “Música em Pó” de Eduardo Morais no Cineclube de Ponta Delgada.
Numa coorganização da produtora Lovers & Lollypops e a Yuzin Agenda Cultural, de salientar foram as mais de trinta parcerias efetuadas com espaços comerciais do centro histórico da cidade e a quantidade diversificada de ambiências surpreendentes. Foi uma tremorização cultural. A perfeição é uma série de pequenas coisas bem feitas, e o Tremor esteve muito perto disso. Até as imperfeições foram perfeitas. Soube tão bem que devia ser proibido. Se o Tremor foi magia, deve existir um ilusionista. Ou vários. Nós sabemos que foram vários. A música esteve sempre a servir de pano de fundo, mas o Tremor estava por toda a parte. Desejam-se réplicas mais fortes desta experiência para daqui a um ano. Até lá, o Tremor fica na aurícula.
in Jornal Terra Nostra, 18 de abril de 2014