O terceiro coração da Viola da Terra

Fui questionado uma vez acerca da forma como anuncio as datas nos textos das crónicas: “mas, podias escrever a data, pura e simplesmente… para quê escrever ‘vinte dias e mais um’, quando ‘21’ diria o mesmo?” É uma questão pertinente, mas a resposta é simples: convida o leitor a exercitar a mente. Enquanto faz as contas para chegar ao veredicto, fomenta mais uma dúzia de sinapses e ligações neuronais. Vai lembrar-se dos pormenores com mais facilidade, senão vejamos….

Coração MúsicaEstávamos no nono mês do ano zero da década de oitenta, quando a freguesia de Ribeira Quente festejava o segundo dia após o vigésimo – digam lá se não vos aguça! Mesmo que não se recordem amanhã de manhãzinha, esse vigésimo segundo dia terá seguramente honras de feriado – no amanhã colectivo. Porquê? Simples: para homenagear um rapaz, que agora é homem, e que graúdo será certamente. Mas não um homem qualquer: um daqueles com um agá grande!

Em conversa com uma tertúlia de poetas da nossa praça, foi PENA termos chegado à conclusão de que o sucesso e reconhecimento artístico acontece – por inúmeras vezes – depois da partida do artista. Sou inequívoco advogado do oposto: se há mérito, tem de ser reconhecido, enquanto ainda há um reconhecido a reconhecer. Não é possível descrever o perfume de uma flor sem a farejarmos. Adiante.

Quantas vezes tem este tal homem marcado a diferença? Incontáveis. Será possível quantificar o seu contributo para a cultura das ilhas de bruma? Começa a ser difícil. Teve o pai como mentor no violão e Carlos Quental como professor nos corações. Juntou-se a Ricardo Melo e Ana Medeiros para fazer nascer Música Nostra e brotar Cantos da Terra; os mesmos cantos que percorreram quase todas as ilhas açóricas, Fnac’s do continente e Bruxelas! Levou o nome verde maduro dos Açores a Castro Verde, partilhando os palcos com Pedro Mestre da Viola Campaniça, José Barros da Viola Braguesa e Vítor Sardinha da Viola de Arame Madeirense. Não satisfeito, ainda experimentou a bravura de nos trazer Chico Lobo da Viola Brasileira! Ainda a procissão estava no adro, e esta criatura já juntava o tradicional com o electrónico: chamavam-lhe o Projecto Azorecombo, definido como um concerto de transmutações, onde partilhou as sonoridades com a dupla Miguel Carvalhais/Pedro Tudela e ainda Vítor Joaquim. As actuações sucedem-se, por exemplo, em aventuras museológicas por Vila Franca do Campo, ao lado dos grandes tocadores Dinis Raposo (uma vénia ao fadista!), e Carlos Estrela, a convite do grande e dinâmico antropólogo Professor Doutor Rui de Sousa Martins; e até por grutas carvoeiras, a sua mais recente dinâmica. Sim, a Gruta do Carvão é um espaço dinâmico, acusticamente falando e não só – parabéns pela iniciativa!

Rafael Carvalho

E eis que o pano se abre, e se descortina que o tema central de toda esta azáfama é a Viola da Terra. Alguns também a tratam por Viola de Arame, ou “aquela dos dois corações, o que parte e o que fica”, mesmo que se ponham frente a frente a micaelense e a terceirense. A sua alma já ganhou vida por lendários – e muitos vivos – literários, mestres da palavra que me recuso a imitar, declino a responsabilidade de enumerar os seus simbolismos, de falar da lágrima da saudade, do açor oculto, do cordão umbilical, das plantas, do trigo, do ás de oiros

Estamos aqui a celebrar os feitos, as Conversas à Viola, o enaltecimento da arte, nua e crua, e da passagem da palavra. Sim, porque Rafael Carvalho não tem apenas conseguido fazer. Rafael Carvalho é também um pregador, um missionário, um apóstolo! Divulga, difunde e ensina a Viola da Terra. Contribuiu largamente para evitar a extinção de uma tradição, que se adivinhava próxima. Quer seja pelo dinamismo empregue na Escola de Viola da Terra e Violão da Ribeira Quente, pela entrega conseguida junto à Escola de Viola da Terra do Grupo Folclórico da Fajã de Baixo, pelo exemplar desempenho no Conservatório Regional de Ponta Delgada e pela comemoração do Dia da Viola da Terra, pela irrepreensível direcção musical da Orquestra de Violas da Terra, ou mesmo pelo empreendedorismo semeado na Associação de Juventude Viola da Terra.

Rafael Carvalho é dono do terceiro coração da Viola da Terra! Aqui fica o reconhecimento. Aqui fica um bem haja! Despeço-me ao som do seu registo “Origens”, que fica certamente na aurícula…. e na História da cultura açoriana!

in Jornal Terra Nostra, 08 de Fevereiro de 2013

Publicado por Pedro Almeida Maia

http://www.almeidamaia.com/

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