CANTO PRIMOGÉNITO
madrugada
O doce marulhar sussurrava, distante, hesitante,
por entre acervos de lava negra, estendidos, abertos,
como cabelos de uma ninfa, garras de um tal Deus.
E a luz subiu, para aquecer as vinhas e epigeus.
A encosta reluziu, espelhou o amor de Apolo,
e as criaturas acordaram na verdade do seu colo.
A vinha baixa, rastejante, salivava toda a linfa,
Os muros soltos, alinhados, cujas pedras refulgiam,
agasalhavam os mistérios, os preciosos bagos.
E as uvas vacilaram naqueles cachos vagos.
Acalente a brisa os lagos, seus despidos alunos,
do frio, da tempestade e dos azares importunos.
CANTO SEGUNDO
manhã
A faina rasgou o chão, os suores lavaram os regos,
e as botas deslustradas caminharam para os cestos.
Madrugadores do labor, em sorrisos com sabor,
afundaram mãos de calor nas ramagens do amor.
E os cortes rasgaram os caules, a seiva debutante,
e os cachos tombaram, soltos, naquele instante.
Transbordados, subiram os vimes aos ombros,
o peso para as costas. O sumo virgem e fecundo
era diamante por lascar, bago de ouro por moldar.
Gemas ou preciosidades, granjearam novo lar.
E revolutearam todos, palpitaram em jubileu,
na descida para o lagar, na apoteose de Morfeu.
CANTO TERCEIRO
tarde
Ó ócio breve, Diabo da fadiga, do quebranto,
vai p’ra longe, ou p’ra mais perto do Inferno!
Deixa os homens trabalhar, despertos, atentos,
dai-lhes alma, alento, e libertai esses tormentos!
E a labuta regressou, alegrou os vinhateiros,
o alimento contagiou e libertou os adegueiros.
Eram todos iguais, quase irmãos, como se feitos
do mesmo barro, ou até vinho do mesmo jarro.
Prematuros de boa pinga que destilavam bagaço,
fortes como aço, mais do que um grande abraço.
E as lides regressaram, mas tão rápido passaram,
que a noite e os astros do céu negro se apossaram.
CANTO QUARTO
noite
Rara paz no amolar das navalhas, entre muralhas.
Até ao lavar dos cestos se vindima, vê-se a uva.
Por entre pipas gigantes, marcham, ao centro,
sem levar a boca às bicas, invadem, adega dentro.
Chegava a hora das pegadas no lagar, recheado,
regado pelos risos de um momento encantado.
“Este vai ser reserva!”, diz o da primeira pegada.
Conhecia cada sabor, cada licor, qualquer vinho
e aguardente. Ficava dormente, mas contente.
Calcaram os bagos, riram, bailaram alegremente.
E o suco precioso jorrou ali, verdadeiro, eis!
Tirado o vinho, há que bebê-lo! Bebeis?
in Jornal Fazendo, n.º 93, junho de 2014